A leitura da utopia

Por volta de 1516, Thomas More imaginou a chegada do Homem civilizado num paraíso natural e como esta ilha seria o lugar ideal para a construção da sociedade perfeita. Escreveu, então, sua maior obra: "Utopia". Este conceito de utopia construído pela literatura do século XVI desencadeou uma desordem na organização racional do mundo atual.
utopia literatura

Em 1503, Américo Vespúcio – mercador, geógrafo e explorador de oceanos – voltava de sua expedição à América com relatos extraordinários sobre uma ilha paradisíaca (que hoje corresponde ao território de Fernando de Noronha, no Brasil). Segundo alguns historiadores, Thomas More – diplomata, escritor e homem de leis – incentivado pelo espírito desbravador da era mercantilista e encantado com estes relatos de Vespúcio, imaginou a chegada do Homem civilizado num paraíso natural e como esta ilha seria o lugar ideal para a construção da sociedade perfeita. Por volta de 1516 escreveu, então, sua maior obra: Utopia.

Apesar da projeção de perfeição, More deixou claro estar ciente de que o pensamento humano sempre estará ligado às questões de "pouco valor moral" e inviabilizou a sociedade descrita em sua obra colocando-a num patamar inalcançável logo no título: a palavra “utopia” (criação do próprio More) vem da soma dos radicais gregos equivalentes a “não” e “lugar”, ou seja, o “não-lugar” ou o “lugar que não existe”.

More cunhou o termo, mas a ideia da sociedade perfeita sempre esteve presente nos registros literários do Homem: temos como exemplos o Éden bíblico (a designação do mundo ideal moldado por Deus do qual os humanos foram expulsos); "A República" (livro no qual Platão descreve a cidade de Calípole, uma sociedade perfeitamente ordenada governada de forma totalmente justa e não-corrupta) e "A Cidade de Deus" (no qual Santo Agostinho idealiza a “eterna Jesusalém” onde todos vivem inteiramente de acordo com os preceitos do Cristianismo).

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Voltando a More, constata-se que as interpretações de sua obra na época a tiveram como um projeto praticável e impuseram-na um sentido estritamente econômico. Para viabilizar a construção da sociedade ideal seria necessário apenas uma coisa: riqueza. Este preço a pagar pela tentativa de perfeição fez com que vorazes decisões econômicas fossem tomadas e vistas como conseqüências necessárias que seriam compensadas pelos benefícios finais. Maquiavel (contemporâneo a More), em sua célebre frase “os fins justificam os meios” registrou toda esta visão econômica da época e hoje, na pós-modernidade, sua obra nada utópica O Príncipe é considerada fundamental para entendermos o emaranhado de valores desta época, pelos quais ainda vivemos.

Até agora vimos que o pensamento econômico da época interpretou a idealização utópica de More como um fim possível de ser atingido e se usou disso para justificar atitudes inóspitas tomadas pela economia da época. Mas que atitudes são estas? Podemos elencar a exploração exacerbada das colônias, a balança comercial favorável (exportar mais e importar menos) e a visão do sistema econômico como o jogo de soma zero (o ganho de um só é possível com a perda do outro). Cabe a nós perceber se o que realmente se visava na época era a construção da sociedade perfeita ou apenas o incessante acúmulo de riquezas sobre o qual perdemos o controle.

E quais as consequências disso tudo na sociedade atual? Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, a humanidade se depara com uma desordem na organização racional do mundo. Segundo ele, a evolução do pensamento do século XVI (aqui descrito) tornou tudo instável e hoje nossas vidas se resumem a tentativas de lidar com essa instabilidade.

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Este problema levou os pensadores contemporâneos a formular uma “Nova Utopia”, na qual ao invés de combatermos todo o sistema (o que More, em 1516, já deixou claro ser impossível), combateríamos apenas suas consequências. Ou seja, tentaríamos melhorar as condições de vida atual de acordo com a realidade em que estamos inseridos, dentro de nossas possibilidades.

Podemos notar a reverberação da mudança do pensamento utópico nas obras romanceadas do século XX , as quais, diferentemente do que acontecia nos clássicos, mostravam o embate entre perfeição e realidade. Parece que finalmente as interpretações acerca das sociedades utópicas conformaram-se com sua inviabilidade: as novas histórias mostram utopias que se tornam obsoletas ou que travam uma severa luta para permanecerem tal qual idealizadas. Trata-se de títulos como Uma Utopia Moderna, de H.G. Wells – no qual uma comunidade rural vive sob uma estrutura perfeita, mas seus moradores a abandonam – e Islândia, de Austin Tappan Wright, que expõe um país regido por uma política de isolamento total, rejeitando qualquer industrialização e numa eterna (e inútil) tentativa de barrar influências externas.

Vimos, então que a edificação de valores utópicos ainda se faz presente na contemporaneidade pós-moderna, porém quase exclusivamente em análises sociológicas e filosóficas. Toda utopia romanceada começou a parecer estagnada e ultrapassada, o que deu espaço para a completa destruição do pensamento utópico: autores como George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) basearam-se nos rumos que a pós-modernidade tomava e descreveram futuros apocalípticos onde as tentativas de uma sociedade utópica resultaram justamente no oposto: a não-perfeição. Trataremos mais deste assunto no próximo artigo intitulado “A Literatura da Distopia”.


Mais em: http://obviousmag.org/archives/2010/12/a_literatura_da_utopia.html#ixzz18Od46bcp

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