A atual tendência do cinema mundial em adaptar os verdadeiros contos de fadas medievais - histórias sombrias sobre o mundo das crianças, escritas originalmente para adultos
Há muito tempo o cinema mundial flerta com contos de fadas e seus elementos (assim como eu enquanto cineasta, confesso). Acompanhamos o súbito interesse de Hollywood por recontar os eternos Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Peter Pan, Rapunzel. Algumas dessas versões, como as de João e Maria e Branca de Neve, têm sido encenadas de forma mais sombria, violenta – e para jovens e adultos. E é lindo quando as adaptações respeitam a riqueza original dos também chamados, merecidamente, contos maravilhosos! Porque, para começar, eles não se destinavam às crianças.
Há muito tempo o cinema mundial flerta com contos de fadas e seus elementos (assim como eu enquanto cineasta, confesso). Acompanhamos o súbito interesse de Hollywood por recontar os eternos Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Peter Pan, Rapunzel. Algumas dessas versões, como as de João e Maria e Branca de Neve, têm sido encenadas de forma mais sombria, violenta – e para jovens e adultos. E é lindo quando as adaptações respeitam a riqueza original dos também chamados, merecidamente, contos maravilhosos! Porque, para começar, eles não se destinavam às crianças.
A maioria dos contos de fadas nasceu na Idade Média, e eram transmitidos oralmente em eventos sociais, com a função de ensinar, prevenir, utilizando o medo. Mostravam a vida dura de tantas crianças e adultos daquela época, que mal tinham o que comer, onde imperava a lei da sobrevivência.São contos compostos por abandono, grande violência física e moral, traição, incesto, estupro. O pássaro comeu os olhos da irmã de Cinderela; João e Maria estavam prestes a ser devorados por uma mulher canibal, que seria queimada viva por eles mesmos; o princípe da Bela Adormecida, comprometido com outra, abusou sexualmente dela durante o sono.Todas essas histórias, de fato, foram feitas especialmente para crianças, meus amigos!
Essas narrativas, ao longo do último século, têm sido adaptadas ao cinema pela Disney em formato de animação, atenuando a crueldade para cativar o público infantil e, ainda que se perca algo de seu mistério e simbologia, ajudam a preservar o acervo desses contos, que recontam nossa história e imaginário desde sempre. Já as versões desses filmes para adultos pertencem, aparentemente, a um novo gênero do cinema (inspirados nos contos ou não), misto de inocência infantil e crueldade, que me fascina enquanto cineasta, sobretudo devido à riqueza simbólica. Assim como na jornada do herói de Vogler - papa dos manuais de roteiro -, os protagonistas dos contos de fadas possuem uma busca (no caso, de caráter existencial), e são obrigados a passar por algum tipo de iniciação que os obriga a sair do cotidiano e entrar na aventura (de caráter fantástico) que os modificará para sempre.
Os roteiros desses filmes incluem sempre alguém, algum lugar e/ou elemento mágico nessa jornada, quando a jornada em si não o é. É o caso do famoso mexicano O Labirinto do Fauno, no qual a pequena Ofélia adentra um mundo fantástico sombrio que simboliza, na verdade, uma jornada ao sagrado feminino.Ofélia recebe a prova de que é uma princesa (sempre as princesas!) de um reino do submundo, através do sinal de uma lua em seu corpo (símbolo do feminino), cumpre uma missão dentro de uma árvore mágica - cuja entrada redesenha uma vagina e os galhos, uma trompa de falópio -, onde rasteja numa cavidade úmida e escura (o útero). Por todo o filme, vemos imagens em forma de trompas, além da gravidez sangrenta da mãe, seguida de mortes e sacrifícios que confirmam: O Labirinto é um filme sobre o renascimento, o retorno ao aconchego do útero materno - e mesmo a antes disso, à existência transcedental.
O Labirinto do Fauno inaugura um gênero, até certo ponto, novo para Hollywood. Isso porque, aliado`à estrutura dos contos de fadas, o filme possui demasiada violência para ser visto por crianças, embora protagonizado por elas e tratando do seu mundo; tampouco é um filme de terror clichê com criancinhas mortas para apavorar adultos. Por isso, quando o diretor propôs o projeto a Hollywood, exigiram que ele eliminasse a violência e o vendesse como filme infantil (sequer sabiam categorizá-lo! Que gênero era aquele?) - mas graças às fadas, del Toro recusou.Seu enorme sucesso em festivais e bilheteria comprovaram que existe um público mais velho ávido por fantasias sombrias, mundos fantásticos belos e cruéis saídos dos contos da Idade Média. A grande quantidade de adeptos dos jogos de RPG no mundo são a prova disso.
Além da jornada mística simbólica, o filme de del Toro possui inúmeras referências aos verdadeiros contos de fadas. É comum vermos nesses livros, por exemplo, a presença da relação do homem/criança com animais e a natureza. Dessa forma, o personagem, quase sempre infantil, entra em contato com seus sentidos, seus instintos mais animais, numa jornada de auto-descoberta. E Ofélia trava o tempo todo uma luta com o mitológico Fauno, ser híbrido metade humano, metade animal, senhor das florestas. Nos contos, muitos animais falam e agem como adultos (o coelho de Alice), mentem para tirar vantagem, comer criancinhas (Chapeuzinho Vermelho, Os Três Porquinhos) e coisas assim. Também estão sempre presentes nos contos os arquétipos apontados pelo psicanalista Carl Jung: o herói viril, a bruxa/feiticeira, a donzela pura, o mago, o mentor, entre outros.
Quem também utiliza alguns desses elementos dos contos de fadas medievais é o hollywoodiano Tim Burton. Seus filmes são sombrios, misteriosos e, mesmo quando abarcam o público infantil, como Alice no País das Maravilhas, guardam a mesma fotografia de penumbras, personagens esquisitos e/ou maléficos saídos dos tempos medievais ou mesmo atemporais.
Como disse, esses elementos também estão muito presentes no meu trabalho enquanto diretora e roteirista de cinema, sobretudo nos meus últimos dois curtas, que rodaram por vários festivais do país, do exterior e me renderam prêmios. Evelyn, Evelyn, rodado na Espanha, conta a história de uma menininha que não se adapta à sua casa e escola e vive num mundo próprio. É uma espécie de bosque encantado e estranho, com uma árvore gigante, sobre o qual costuma desenhar e sonhar. Inadaptada à escola e à casa, ela larga tudo e foge para seu mundo.
Duas Marias, meu curta mais recente, conta a história de duas menininhas abandonadas, com fome, que vagam à procura de ajuda (algo como João e Maria). Um dia, conseguem abrir um velho baú da família e vestem suas roupas. A escolha dos trajes – cada um conta uma história daquela família pobre e sofrida - não só determina como elas são, mas como viriam a ser, pequenas cinderelas que se metamorfoseiam a partir do que vestem. O curioso é que esses dois enredos não foram inspirados nos dos Irmãos Grimm: eu havia sonhado com eles, assim como com outros do gênero, que um dia hei de filmar. Essa é a prova viva de que, passados muitos séculos, permanece em nossos inconscientes a força desses contos maravilhosos, compondo o inconsciente coletivo por excelência de Carl Jung.
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